Frascos de simplicidades

 

Sinto dizer-lhe que esses dias têm sido tediosos e monótonos. Isolar-se é desolador, para quem aprecia bater pernas nas ruas. O tempo não colabora para permanecer em casa. Sol dourado e intenso ocupa a paisagem. Se fosse chuva, evidentemente, o isolamento seria menos angustiante. Sinto falta da neblina que encobre parte das montanhas daqui. Sinto falta do frio, do vento e da chuva. Da varanda do quarto observo a rodovia movimentada. Ônibus e carros de empresas são maioria. Há tantos quebra-molas que é possível ver o perfil de passageiros e motoristas. Não creio que esse detalhe seja relevante para você que mora na capital. São tantos desconhecidos andando em seus automóveis ou trabalhadores que passam horas nas estradas. Quanta monotonia em relatar frugalidades. Não tenho novidades nem notícias alvissareiras. Tenho lido livros de autoajuda; estas leituras são, de longe, apreciadas por mim. É como se fossem receitas prontas para se viver. Acho que a vida é simples demais para complexidades. Essas obras têm batido o recorde de vendas… Tudo é modismo. Daqui a pouco, as necessidades serão outras; as temáticas desses livros, outras. Não sei o que vem por aí. Viver e conviver tornaram-se pautas de leitura. Antigamente era tudo mais simples, sem bulas para relações familiares e sociáveis. As fraturas da mente eram menos faladas e divulgadas. Creio. Esses tempos têm sido massacrantes, de fato. Vidas e rotinas escancaradas, tristezas acumuladas, frustrações exacerbadas, ansiedades intensas, depressões robustas, comunicações violentas; relacionamentos de seda. Rasgam-se na primeira crise. Um casal discute de madrugada na porta de casa, como se fosse normal rolar no chão na frente das pessoas que passam na rua. Revejo a cena replicada nas redes sociais. Uma médica foi agredida por um casal no posto de saúde. Você deve ter visto o vídeo. Viralizou. Coisa ruim é como erva-daninha na rede. Antes era divulgado de porta em porta. A profissional de saúde pediu apenas um teste. Um teste! Imagina se fosse um exame da cabeça. É tanta gente infectada. Meu vizinho faleceu, não foi de infecção, mas de idade. Cantou com a cuidadora na varanda pra mim, antes de ir. Foi feito passarinho. Tenho tido alguns calafrios, coriza e espirros. Os sintomas da infecção se suavizaram, mas não foram embora. Tenho pensado em me mudar daqui. É muito tempo vivendo no mesmo lugar. Acho que os ares da praia me farão bem. Quero ficar três dias longe das redes sociais. Topa o desafio? Ser feliz tem sido artificial e complexo para o meu gosto. Quanto tempo não danço. Gostava de dançar, ouvir música, ir ao baile ou me sentar no meio-fio. Não se fala em baile, disse uma adolescente pra mim. Estou fora de moda. Falo pra ela, saudosista como sou, sinto falta dos jogos de rouba-bandeira e amarelinha. Ela dá de ombros. Não sabe do que estou falando. Pergunta se está disponível no game store para download. Nunca fui jurássica nem contra a contemporaneidade. Você sabe. Falta um ponto de equilíbrio ou convivência entre: engenhocas e tecnologias; subjetividade de ser feliz e ter coisas; ter mansão, automóvel de luxo, geladeira, fogão, celular e todas as demais parafernálias tecnológicas lançadas no mercado de tempos em tempos. Semana passada li a crônica ‘Felicidade’, de Rachel de Queiroz, que diz: “outro dia, falando do caboclo nordestino, eu disse aqui que ele não era infeliz. Ou não se sente infeliz, o que dá o mesmo. Mas é preciso compreender quanto varia o conceito de felicidade entre o homem urbano e essa nossa variedade de brasileiro rural”. Lá vai Rachel, comparando a vida simples do homem do campo com o da cidade. O homem rural vive a vontade do corpo e do tempo, sem firulas, puxa-saquismo de patrão e sujeição. Entrei na casa de uma funcionária há alguns meses e vi o reboco nas paredes, do chão sem piso. Três cômodos, poucos móveis, fogão de quatro bocas, geladeira, uma mesa pequena de madeira, um rádio velho (quanto tempo não vejo um rádio de pilha!), quatro panelas, bule, facas, colheres, pratos e um cachorro… Uma cadeira de balanço, dois panos de prato e um filtro de barro. E um sorriso escancarado no rosto. E mais nada. E eu, a sofrer com um punhado de mobílias empoeiradas, roupas novas sem uso, e um punhado de parafernálias em casa. E eu, acumulando e arquivando, inutilidades que se usadas, logo serão esquecidas e descartadas em um canto do armário, guarda-roupa ou quarto de despejo. Felicidade é um conceito subjetivo, sem sujeição ao consumo desenfreado, às relações artificiais, ao apego desnecessário a cargos, funções e aos bens materiais. Que eu e você consigamos semear frascos de simplicidades na nossa vida. Esta é minha mensagem, postada nas redes; no passado seria enviada pelos correios ou levada por um pombo-correio. Ah, quase me esqueço de falar! Adotei um cachorro. O nome dele é Jota… Quiçá adote meia dúzia de galinhas.